quarta-feira, 31 de maio de 2017

Oeiras - Parque dos Poetas

Sophia de Mello Breyner Andresen

A Forma Justa

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas" 

Amar!

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

Florbela Espanca, in "Charneca em Flor" 

Florbela Espanca


Teixeira de Pascoaes

O Nascimento

Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha,
Rompendo a sombra etérea do crepúsculo!
A paisagem tornou-se mais estranha,
Mais cheia de silêncio e de mistério!
Dormem ainda as árvores e os homens,
E dorme, em alto ramo, a cotovia…
E, se ergue já seu canto, é porque sonha
julga ver, sonhando, a luz do dia!

E, pelos negros píncaros, a estrela
É divino sorriso alumiante.
Oh, que esplendor! Que formosura aquela!
É lírio de oiro aberto! É rosa a arder!

Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha,
Tão virginal, tão nova, que parece
Sair das mãos de Deus, a vez primeira!

E como, sobre os montes, resplandece!

Persegue-a o sol amado... No oriente,
Alastra um nimbo anímico de luz.
E a antiga dor das trevas, suavemente,
Ondula, em transparência e palidez.

Aí vem a estrela, alumiando a serra!
E os olhos encantados dos pastores
Voltam-se para a estrela... E cá na terra
Há mágoas e penumbras, a fugir...

Como ela voa, cintilando e rindo
Aos penhascos agrestes e desnudos!

E os pastores, atentos, vão seguindo
A direcção etérea do seu voo...

E a quimérica estrela deslumbrante
Parou sobre a capela, onde a Saudade
Agasalhava o Deus recém-nascido,
Com seu manto de amor e claridade.
E, amparando-o nos braços, lhe estendia
Os seios maternais. A criancinha
Mamava. E a Saudade lhe sorria,
Num enlevo, num êxtase sagrado.

A primavera, errante no Marão,
Veio cobrir de lírios e de rosas
O berço do Menino. E veio o outono,
E vieram ermas sombras dolorosas.
Logo, o outono rezou a sua prece

De cinzas e de bruma. E o lindo sol,
Entrando pelos vidros, aparece,
Junto ao pequeno berço. E toda a luz
Do céu veio com ele! E veio a noite.
Vieram as avezinhas, que deixaram,
No recôndito ninho, abandonados,
Os filhos ainda implumes. E cantaram
Em louvor do Menino e da Saudade.

E Marânus sentia, mais alegre,
Tornar-se vida, amor, fecundidade,
A sua antiga e mística tristeza.

E, ao ver a própria alma da sua raça
Criar a Virgem Mãe dum novo Deus,
Eis que à flor dos seus lábios esvoaça
O sorriso supremo da vitória.

E a Saudade, num casto e luminoso
Gesto de amor, tomando, novamente,
O Menino nos braços, o embalava.
E sobre ele inclinava docemente
A fronte aureolada. E uma canção,
Que era feita de todas as cantigas,
Mais num murmúrio brando de oração

Que em voz alta, cantava. E o Deus menino,
Com os olhos abertos, num espanto,
Recebia do mundo a clara imagem
E o seu nubloso e misterioso encanto...

Também o bom pastor, a quem Marânus
Havia prometido o Nascimento,
Sentia em seu espírito surgir,
Envolto num astral deslumbramento,
Estranho e novo ser, que dissipava
O seu velho crepúsculo interior,
Onde um fantasma, trágico e nocturno,
Aparição do medo e do terror,
Furibundo, reinava, desde os séculos!

O Menino crescia, como a aurora
Que, sendo esparso vulto de mulher,
Na linha do horizonte, que descora,
Lembra a auréola dum Deus anunciado…

Em volta dele, as coisas se animavam
Dum sentido mais belo e verdadeiro;
E a sua alma oculta desvendavam,
Como na luz primeira da Existência.

Mundo transfigurado! Ó terra santa!
Ó terra já divina e toda erguida
Àquela altura ideal da Eternidade,
Mais uma vez, a morte foi vencida!

Alguns dias passaram. E Marânus
Disse que ia partir à sua Esposa,
E que se entregava ao casto amor, tão puro,
Desta leal paisagem montanhosa.
E, chorando, abraçava-a, e repetia
Que tinha de partir; mas, dentro em pouco,
Por uma clara noite, voltaria.

E a trágica Saudade, sufocada:

«Eu bem conheço a voz que te chamou!
Voz que ilumina as árvores e as nuvens,
E que meu ser antigo transformou
Neste meu ser anímico e perfeito.»

E, mais serena e resignada: «Vai!
Cumpre a sua vontade. É teu destino...»

E beijando-o nos lábios, e tomando
Em seus braços de imagem o Menino,
Subiu a um alto píncaro escarpado,
De onde ela, por mais tempo, contemplasse
O esposo e companheiro bem amado.

E, sozinha, de pé, sobre um rochedo,
Disse-lhe um longo adeus.
E, já distante,
Marânus, ansioso, para trás
Volvia a face triste, a cada instante.
E parava, cismando…
Mas, ao longe,

O corpo da Saudade, vago e incerto,
Perdia-se, no ar que se turbava...

Anoitecia. A serra era um deserto.
E Marânus seguia o seu caminho.

Teixeira de Pascoaes, in 'Antologia Poética' 


Camilo Pessanha

Caminho


I

Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...
Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...
Porque a dor, esta falta d_harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,
Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.

II

Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
d Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho
É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.
É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto
Que choramos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.

III

Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.
Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora!...
Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...
Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar d encher a alma.

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra' 






José Régio

Sabedoria

Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem esperança...
E venha a morte quando
Deus quiser.

Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara.

Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar. . .
E venha a morte quando Deus quiser.

Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas.

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo' 






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