Teixeira de Pascoaes
O Nascimento
Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha,
Rompendo a sombra etérea do crepúsculo!
A paisagem tornou-se mais estranha,
Mais cheia de silêncio e de mistério!
Dormem ainda as árvores e os homens,
E dorme, em alto ramo, a cotovia…
E, se ergue já seu canto, é porque sonha
julga ver, sonhando, a luz do dia!
E, pelos negros píncaros, a estrela
É divino sorriso alumiante.
Oh, que esplendor! Que formosura aquela!
É lírio de oiro aberto! É rosa a arder!
Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha,
Tão virginal, tão nova, que parece
Sair das mãos de Deus, a vez primeira!
E como, sobre os montes, resplandece!
Persegue-a o sol amado... No oriente,
Alastra um nimbo anímico de luz.
E a antiga dor das trevas, suavemente,
Ondula, em transparência e palidez.
Aí vem a estrela, alumiando a serra!
E os olhos encantados dos pastores
Voltam-se para a estrela... E cá na terra
Há mágoas e penumbras, a fugir...
Como ela voa, cintilando e rindo
Aos penhascos agrestes e desnudos!
E os pastores, atentos, vão seguindo
A direcção etérea do seu voo...
E a quimérica estrela deslumbrante
Parou sobre a capela, onde a Saudade
Agasalhava o Deus recém-nascido,
Com seu manto de amor e claridade.
E, amparando-o nos braços, lhe estendia
Os seios maternais. A criancinha
Mamava. E a Saudade lhe sorria,
Num enlevo, num êxtase sagrado.
A primavera, errante no Marão,
Veio cobrir de lírios e de rosas
O berço do Menino. E veio o outono,
E vieram ermas sombras dolorosas.
Logo, o outono rezou a sua prece
De cinzas e de bruma. E o lindo sol,
Entrando pelos vidros, aparece,
Junto ao pequeno berço. E toda a luz
Do céu veio com ele! E veio a noite.
Vieram as avezinhas, que deixaram,
No recôndito ninho, abandonados,
Os filhos ainda implumes. E cantaram
Em louvor do Menino e da Saudade.
E Marânus sentia, mais alegre,
Tornar-se vida, amor, fecundidade,
A sua antiga e mística tristeza.
E, ao ver a própria alma da sua raça
Criar a Virgem Mãe dum novo Deus,
Eis que à flor dos seus lábios esvoaça
O sorriso supremo da vitória.
E a Saudade, num casto e luminoso
Gesto de amor, tomando, novamente,
O Menino nos braços, o embalava.
E sobre ele inclinava docemente
A fronte aureolada. E uma canção,
Que era feita de todas as cantigas,
Mais num murmúrio brando de oração
Que em voz alta, cantava. E o Deus menino,
Com os olhos abertos, num espanto,
Recebia do mundo a clara imagem
E o seu nubloso e misterioso encanto...
Também o bom pastor, a quem Marânus
Havia prometido o Nascimento,
Sentia em seu espírito surgir,
Envolto num astral deslumbramento,
Estranho e novo ser, que dissipava
O seu velho crepúsculo interior,
Onde um fantasma, trágico e nocturno,
Aparição do medo e do terror,
Furibundo, reinava, desde os séculos!
O Menino crescia, como a aurora
Que, sendo esparso vulto de mulher,
Na linha do horizonte, que descora,
Lembra a auréola dum Deus anunciado…
Em volta dele, as coisas se animavam
Dum sentido mais belo e verdadeiro;
E a sua alma oculta desvendavam,
Como na luz primeira da Existência.
Mundo transfigurado! Ó terra santa!
Ó terra já divina e toda erguida
Àquela altura ideal da Eternidade,
Mais uma vez, a morte foi vencida!
Alguns dias passaram. E Marânus
Disse que ia partir à sua Esposa,
E que se entregava ao casto amor, tão puro,
Desta leal paisagem montanhosa.
E, chorando, abraçava-a, e repetia
Que tinha de partir; mas, dentro em pouco,
Por uma clara noite, voltaria.
E a trágica Saudade, sufocada:
«Eu bem conheço a voz que te chamou!
Voz que ilumina as árvores e as nuvens,
E que meu ser antigo transformou
Neste meu ser anímico e perfeito.»
E, mais serena e resignada: «Vai!
Cumpre a sua vontade. É teu destino...»
E beijando-o nos lábios, e tomando
Em seus braços de imagem o Menino,
Subiu a um alto píncaro escarpado,
De onde ela, por mais tempo, contemplasse
O esposo e companheiro bem amado.
E, sozinha, de pé, sobre um rochedo,
Disse-lhe um longo adeus.
E, já distante,
Marânus, ansioso, para trás
Volvia a face triste, a cada instante.
E parava, cismando…
Mas, ao longe,
O corpo da Saudade, vago e incerto,
Perdia-se, no ar que se turbava...
Anoitecia. A serra era um deserto.
E Marânus seguia o seu caminho.
Teixeira de Pascoaes, in 'Antologia Poética'
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